“Abaixo de determinadas ‘paisagens bonitas’ (certas opiniões que demonstram preocupações com isso e aquilo), correm esgotos”, afirma Rúbio Rocha.

Olá!

Para quem não me conhece aqui no grupo, sou Rúbio (Rubinho de dona Bela, nascido no Paiaiá, onde morei até os meus 21 anos e em cuja terra tenho fincadas as minhas raízes).
Meu amigo e conterrâneo Sílvio de Cabelinho criou esse grupo(WhatsApp) e incluiu muitas pessoas de nossa terra (ou que tenha alguma relação com ela) com o propósito de levantar uma discussão acerca do Mercado Municipal de nosso povoado, concentrando-a em dois pontos conflitantes: restauração ou destruição para oportunizar a construção de uma praça.
Em decorrência de minha vida encontrar-se num ritmo vertiginoso, não pude acompanhar todo o desencadear do diálogo constituído por essa pluralidade de vozes. Um diálogo, diga-se, permeado por controvérsias (o que é normal e aceitável) e por manifestações desrespeitosas de alguns (o que, entendo, não deve ser merecer boa acolhida).
Embora, de início, tenha me mantido a certa distância, agora, sinto-me compelido pelo senso de justiça a exprimir-me neste grupo. E o motivo é este: um áudio em que Geraldo usa a expressão “meio gay”.    
Bom, partamos da transcrição de sua fala: “Ô, Jaqueline, mande esse tal de Igor aí, neto do Maurito, né? Aquele carinha que é meio gay ou é o outro? Aquele que é meio gay até parece que é legal, o outro não sei. O que é que ele acha (…).”
A primeira conclusão a que chegamos é que o áudio se trata de uma mensagem privada, a qual, por equívoco, ao invés de ser enviada para Jaqueline, foi enviada para o grupo.
Essa produção discursiva de Geraldo foi tomada, por uma ou mais pessoas, como uma manifestação homofóbica. Aqui, claro, entra a minha voz dissonante: não encontro em sua fala preconceito algum. Entendo que o discurso em questão clama por uma análise destituída de quaisquer traços emocionais. A meu ver, a frieza racional deve conduzir a nossa interpretação.
O trecho polêmico é esta pergunta: “Aquele carinha que é meio gay ou é o outro?” Pensemos, levantando uma outra indagação: o que motivou o autor do áudio a fazer tal pergunta à sobrinha? Prontamente, a resposta oferece-se à nossa compreensão: ao perguntar o que perguntou, Geraldo queria se situar a respeito da identidade de uma determinada pessoa à qual ele estava se reportando. Como Maurito tem dois netos (filhos de Luze), Geraldo quis saber da sobrinha qual era dos dois irmãos aquele sobre o qual estava se referindo.
A ciência psicológica, dentro de seu vasto universo, ensina-nos que há tanto percepções e manifestações objetivas, quanto percepções e manifestações subjetivas. Não há nenhum problema em um homem, por exemplo, demonstrar um comportamento rotulado de viril ou de gay (lembremos que a linguagem é constituída de rótulos, sem os quais ela não existiria). De igual modo, não há nenhum problema em alguém perceber em uma outra pessoa uma conduta viril ou gay. Se, há anos atrás, eu percebia, pelo seu modo de ser, que Clodovil era gay, eu era preconceituoso e homofóbico por isso? Claro que não. O preconceito tem como berço a manifestação de um conteúdo subjetivo que tem por fim diminuir um outro indivíduo, em razão de seu gênero, sexualidade, cor, credo, etnia etc. Avancemos neste ponto. Em seu poema épico “Don Juan”, Lord Byron, no Canto V, escreve: “Antes de entrarem, Baba, sendo o guia, / Dá três ou quatro sugestões a João. / ‘Se puderes, controla essa tua ginga, / O teu jeito viril de rapagão;’ […].” Interpretemos: o personagem Baba percebe em João um “jeito viril de rapagão”. Trata-se aqui de uma percepção objetiva, como seria uma manifestação objetiva eu dizer que as folhas da árvore juazeiro são verdes. Mas, aos versos acima, transcrevo, também “ipsis litteris”, mais dois outros: “Se der, anda com menos sacudidas; / Que é meio estranha essa locomoção […].” Nesta última transcrição, diferentemente da primeira, encontramos um conteúdo subjetivo, um juízo de valor: “… é meio estranha essa locomoção.”
Disso, segue-se que manifestações preconceituosas situam-se em determinados tipos de juízos de valor, em certas expressões subjetivistas. Preconceitos, portanto, não encontram brechas em declarações objetivas. As folhas do juazeiro são verdes: afirmação objetiva; as folhas do juazeiro são feias: afirmação subjetiva, expressão de juízo de valor.
Não há,na fala de Geraldo, nenhum juízo de valor sobre a sexualidade de Igor, sobre a pessoa de Igor. A pergunta “aquele carinha que é meio gay?” não possui nenhum julgamento negativo sobre o jovem. Essa indagação insere-se no campo da percepção e expressão objetivas. A pergunta teve como meta identificar a pessoa e não acusá-la ou diminuí-la. E se, porventura, Geraldo expressasse algo do tipo “Aquele rapaz é um gay e não sabe nada”? Nisto, sim, estaria incrustada uma expressão preconceituosa, pois não exprimiria uma tentativa de identificar o rapaz a partir de seu jeito de ser (corporal); o uso do vocábulo “gay” teria sido usado como modo de desqualificá-lo. Isso, claro, não foi o que ocorreu. Inclusive, na sequência, Geraldo demonstra ter simpatia por Igor, pois falou: “Aquele que é meio gay até parece que é legal, o outro não sei.” Seria diferente se ele falasse “Não gosto daquele que é meio gay”.
Na enunciação oral da linguagem humana, encontramos três traços: linguístico, paralinguístico e extralinguístico (na enunciação escrita, não se encontra este último). Reduzindo a termos simples, o linguístico, o próprio termo já sugere, constitui-se pela materialização fonética; o paralinguístico constitui-se pelo tom de voz; e o extralinguístico compõe-se de expressões faciais e demais gestos. Na fala de Geraldo, como só tivemos acesso ao áudio apenas e, por conseguinte, não o vimos no momento em que o seu enunciado ocorreu, ausenta-se para nós o traço extralinguístico. Com isso, submetem-se à nossa análise apenas dois dos três traços: o linguístico e o extralinguístico. No primeiro, não encontrei nenhum ranço preconceituoso; no segundo, isto é, no tom de voz, também não identifiquei nenhum conteúdo negativo sobre o rapaz de nome Igor.
Em consequência, não consigo vislumbrar qualquer materialidade delitiva no discurso de Geraldo. Aliás, a sua fala pode oportunizar uma discussão de cunho jurídico, mas, antes de cruzarmos a soleira da sala onde se encontra assentado o Direito, temos que passar pela antecâmara da hermenêutica (fonte na qual, diga-se, a esfera jurídica abastece muitos de seus potes).
Em resposta à acusação de cometimento de crime, dou-lhe o seguinte conselho, Geraldo: pegue uma obra de Molière, Gógol, Seán O’Casey, Machado de Assis ou Guy de Maupassant, abra-a, sente-se numa poltrona, leia-a e dê boas gargalhadas.

Agora, dirijo-me diretamente ao jovem em questão: Igor, no romance “As meninas” (obra escrita a 51 anos atrás), de Lygia Fagundes Telles, um personagem pergunta para outro: “Você tem preconceito contra bicha?” E o indagado responde: “Tenho preconceito contra mau caráter”. A sexualidade de uma pessoa não importa, o que importa é o caráter. Infelizmente, a homofobia grassa por nosso país (e por grande parte do mundo). Seja o que você é (hetero ou não) e nunca abaixe a cabeça quando se defrontar com piadas ou enunciados preconceituosos. Eu tenho alguns amigos que são gays e pessoas maravilhosas (sabemos que tanto hetero quanto homossexuais podem ser pessoas boas ou ruins, mas a sexualidade não é minimamente responsável pela caracterização do caráter de ninguém). Devemos sempre nos lembrar do que aconteceu, por exemplo, com o escritor Oscar Wilde e com o gênio da computação Alan Turing, vítimas de barbaridades por causa de sua condição homossexual. No entanto, Geraldo, ressaltemos, não teve uma conduta preconceituosa diante de sua sexualidade, Igor.
No mundo atual, dominado pela ideologia do “politicamente correto” (com seus acertos e erros), entendo que temos que ter muito cuidado no exame dos acontecimentos e dos discursos. Temos que ter muita cautela e entregar o leme à razão, pois interpretações engendradas pela emoção não guardam correspondências com a estrita realidade dos fatos.
No monumento literário de Cervantes, diante dos personagens Dom Quixote e Sancho Pança, surgiu, a certa distância, um rebanho de ovelhas. Dom Quixote enxergou um exército contra o qual deveria combater; já Sancho enxergou nada mais do que um rebanho de ovelhas. Ainda que a centelha quixotesca, em certas situações, perambule por minha alma, procuro ter em minhas órbitas os olhos de Sancho.
Encaminhando-me para final de meu discurso, tenho ainda a dizer que os termos “gay”, “homossexual”, “negro” (e tantos outros) não devem ser expurgados da linguagem; o que devem ser proscritas são as manifestações preconceituosas.
Peço desculpas por esse jornal, mas as circunstâncias me levaram a isso. Em regra, prefiro mais o silêncio. Sou mais de ouvir, observar, analisar e tentar enxergar as camadas subjacentes da realidade e dos fatos. Interesso-me mais pelo que se oculta por trás das aparências. Abaixo de determinadas “paisagens bonitas” (certas opiniões que demonstram preocupações com isso e aquilo), correm esgotos.
Quanto a eventuais desdobramentos deste meu texto, poderei manifestar-me ou não, dependendo de meu tempo livre e da natureza dos comentários.
Tendo cumprido o que me propus, fico por aqui. Abraço.

 

Texto de Rúbio Rocha de Souza.

Rúbio, nasceu no povoado Paiaiá, Nova Soure, BA e mora em Vitória da Conquista(BA). É graduado em Letras Vernáculas, escritor, cronista, contista e,

segundo o Imortal da Academia Brasileira de Letras (ABL), Antônio Torres, depois de ler uma resenha crítica sobre seu livro, que Rúbio o enviara, disse:“é um doutor em letras”.

 

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